quinta-feira, 1 de julho de 2010

Da janela se ouve o chacoalhar das arvores, os galhos balançam e a folhas mexem como dançarinos, o sapatear suave ecoa pela cidade. Leves brisas encharcadas de um sentimento tépido sopram as cortinas.
Olhando pela janela, as ruas estão vazias e só perdura a iluminação dos postes da prefeitura, todo o resto se encontra no breu, me iludo então que toda a cidade está a dormir, de repente tenho paz.
O silêncio humano que apazigua, ajuda a enaltecer a solidão carregada por todos nós. Sentimento mais verdadeiro, fusão de todos os outros, assim acredito. Aqui não existe pressão, nem compromissos a cumprir ou pessoas a ver. Não se precisa agradar ninguém, vive-se na loucura do ser e não da sociedade. Pode-se parecer e soar de todo agradável, mas não é.
Desesperado, calço o meu par de sapatos de Hermes e disparo pela janela em direção a uma escuridão muito maior. Eu não consigo voar, morro de terno e gravata, meu corpo foi encontrado descalço. Eu ainda estou ali, etéreo e flutuando, fez-se o meu desejo.
A alma então vagueia pelas ruas mal alumiadas, nelas descansam corpos abatidos e moribundos, sobre camas de papelão e sob cobertores de trapos. A alma se sente culpada. Reconhece então a rua, enquanto corpo passava por ela todos os dias, mas nunca havia notado tal cena. Surpreende-se então. Vagueia mais um pouco e é só isso que encontra, tem certeza de que por agora se ainda fosse um corpo estaria nauseada. Os corpos fedem a miséria e fome, são não mais que bichos. A alma acredita. Mas e o sentimento de culpa? Foi posto de lado brevemente pelo de surpresa.
Enquanto tudo se fazia real e por toda a parte, não era mais digna de se sentir surpresa, voltou então a culpa.
Atentou-se aos detalhes, queria mais clareza, foi então que pôde perceber que os agora trapos que esses pedaços de carne vestiam eram antes ternos. A alma estava confusa, deveras.
Na face de cada ser a feição antes imposta. A alma podia discernir-lo e então apontava e gritava extasiada “Este é um empresário, aquele um corretor, ah! E aquele ali, aquele ali um advogado!”. Isso só aumentou sua confusão, pois começou a indagar; se são realmente advogados, empresários e corretores, o que estão a fazer na rua? Tão moribundos e acabados?
O dia amanhecia, e por entre os moribundos começaram a caminhar seres pelados, que ela reconheceu como pessoas. Achou tudo muito esquisito, onde estavam as regras e os bons costumes? O sol iluminou a cidade e pôde perceber que dela só se faziam ruínas. Não buscava mais respostas, pois só se fazia mais confusa. Decidiu deixar-se levar. A alma foi arrastada.
O mar de pelados a carregou além das ruínas da antes cidade para uma terra avermelhada, batida e rachada, os moribundos continuavam imóveis como cadáveres. No fim de toda aquela terra vermelha havia um penhasco profundo, talvez sem fim, tomado de escuridão, e lá cada pelado mergulhava, só para depois surgir com pequenas asinhas nos calcanhares, voavam em direção ao horizonte para onde não se avistava nada mais que luz. A alma assistiu. Um após o outro voava em direção a luz, até que restou somente ela. Dentro de si sabia que asinhas não surgiriam milagrosamente nos seus calcanhares, e que se mergulhasse no penhasco não surgiria em direção da luz, mas se afogaria na escuridão.
Olhou para trás, fez menção de voltar à cidade e aos corpos fétidos e acabados, poderia aprender a gostar da companhia. Mas antes que desse um passo sequer foi novamente surpreendida, os moribundos a cercavam com olhos famintos e face assustadora.
A alma era culpada; não podia mais voar e não podia mais entender. O que para ela era precioso, agora não passava de lixo. Fez-se súdita do seu antigo reinado. Fez-se acabada em sofrimento. Desejou o fundo do penhasco, mas sabia que não podia e nem deveria escapar. A alma então sofre para que possa renascer. Renascer em algo oposto. Enquanto isso nós esperamos.

Um comentário:

carolina disse...

de um requinte que me arranca mais suspiros do que palavras.

 
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